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Nicodemos



“José de Arimateia, que era discípulo de Jesus,
mas secretamente por medo das autoridades judaicas,
pediu a Pilatos que lhe deixasse levar o corpo de Jesus.
E Pilatos permitiu-lho.
Veio, e retirou o corpo.
Nicodemos, aquele que antes tinha ido ter com Jesus de noite,
apareceu também trazendo uma mistura de perto de cem libras de mirra e aloés.
Tomaram então o corpo de Jesus
e envolveram-no em panos de linho com os perfumes,
segundo o costume dos judeus.”
Jo 19,38-40

Aqueles dias ficaram gravados em mim de um modo que nunca saberei explicar bem.
Ainda hoje penso… que poderia eu ter feito? Que esperaria ele de mim?...
Era um galileu aparentemente iletrado, mas de uma sabedoria e de uma lucidez como eu jamais vira em alguém.

Eu tinha muito, demasiado a perder.
Era, por aqueles dias, um dos 71 do Concelho, um desses mais importantes entre o povo, nesta cidade que é o Coração da Fé do meu povo… Jerusalém, minha amada Jerusalém.
Foi-me dado um justo lugar que os meus muitos anos de fidelidade a todas as nossas Leis, a todas as nossas Tradições, e uma incansável dedicação pelo nosso povo, me fizeram merecer tal honra…ou talvez não… talvez mais peso tiveram as terras e bens que possuía, já não sei. Mas estava lá escrito o meu nome, entre os grandes: NICODEMOS…


Poderão todos pensar que um lugar de destaque assim traz somente privilégios, confortos, mas, todos os dias, rodeado de tanto luxo sentia-me também aprisionado, sufocado, como quem vive escravo de um número incontável de regras, de procedimentos, de rituais… muitos dos quais já nem eu tinha consciência do seu significado ou simbolismo.
De uma coisa, hoje, estou certo… enjoam-me as honras, o poder, e ser reconhecido pelo que tenho e pelo lugar que ocupo sem muitas vezes conseguir discernir quem são verdadeiramente os meus amigos. Se lhes agrada a minha companhia e os meus interesses, ou se estão a maquinar um jeito de conseguir algum privilégio através das minhas influências e das pessoas poderosas que conheço. Estou cansado de teatros.

E surgiu este galileu, que tantos reconheceram como verdadeiro profeta, e fez tremer dentro de mim todas as certezas, todas as verdades que eu conhecia.
Foi José de Arimateia, que me falou dele pela primeira vez. José, também membro do Conselho, mais novo que eu, parecia sempre mais pronto a acreditar em alguma libertação do nosso povo do poder que nos dominava.
E, um dia, fez-se discípulo daquele Yeshuah galileu. Tantas vezes o avisei para não se deixar envolver com essa gente inculta, mas parecia-me deslumbrado, quase fora de si quando me falava do que ele ensinava, e da presença dele… A própria mãe do José já o seguia. Ele falava-me de tal maneira dele que eu mesmo quis buscá-lo e entender que espíritos possuíam esse homem. Já muitos outros falavam dele também. As suas palavras pareciam cativar os que nada possuíam… e muitos dos que tinham muito poder desprezavam-no.
Parecia que conseguia mesmo fazer vir à superfície a verdade mais profunda do que ia no Coração de cada homem. Vi tantos, pelos palácios que eu tantas vezes percorria, perder a compostura, quando se falava na última novidade provocada por este homem.
Eu já não sabia o que pensar dele. Se ele praticava o bem, porquê tanto rancor no olhar de tantos, porquê tanto encantamento no olhar de outros?
José estava diferente, já não estava presente tantas vezes nas reuniões do Conselho… a não ser naqueles dias antes da Páscoa… quando Yeshuah foi julgado por alguns dos nossos.

Já ouvira a muitos dizer que nada nele havia de violência, não andaria armado. E foi então que me decidi.
Fui ter com ele, numa noite…
Era noite também dentro de mim, porque toda a vida busquei a verdade e parecia-me não a ter encontrado ainda. Tantos anos que dediquei ao estudo das Leis… à procura do Coração do nosso Deus, à procura dos mais pequenos desejos d’Ele, para os satisfazer.
E fui ter com esse galileu, numa noite, cheio das perguntas que as noites fazem crescer dentro de nós… nessa noite eu ainda não o sabia, mas queria muito ver o rosto dele... eu já me tinha cruzado de longe com ele, quando o vi sentado à entrada do Templo, com alguns que passavam e se deixavam ficar a escutá-lo, com palavras que entravam pelo Coração dentro, umas doces, outras duras… Queria muito escutá-lo, queria entender, queria conhecê-lo, mas sem colocar em risco a minha honra, por isso fui de noite ter com ele.

Encontrei-o sentado a colocar uns galhos na fogueira diante da qual estava sentado, o seu olhar parecia tão longe dali… nessa noite não poderia sequer imaginar no que pensaria, só mais tarde eu poderia entender o momento que estava ele a viver. Só mais tarde eu entenderia melhor a razão dos olhares mais amedrontados que o meu, daqueles e daquelas que o cercavam.
Finalmente estava eu ali diante dele, e podia fixá-lo olhos nos olhos… nada nele exalava nenhuma espécie de medo… pareceu-me que não haveriam cadeias que lhe prendessem o pensamento ou aquele olhar… ou o Coração.
Vi que era um homem livre… dessa liberdade que eu silenciosamente desejava no meu íntimo e ainda não conhecia.

Vi nele um judeu como eu, tão igual e tão diferente, tão humilde no modo de vestir e de estar, e no entanto exalava uma dignidade e uma presença tão forte como a de um rei de pés descalços… um olhar tão meigo como o de um familiar irmão e ao mesmo tempo com a dureza própria de um homem da sua idade, nada alheio à maldade que existe nos Corações humanos.
Um único olhar seu, tão expressivo, tão repleto de uma paz inquietante, parecia dizer mais do que muitos livros. Antes mesmo que ele dissesse uma palavra já era inexplicavelmente agradável estar ali com ele.
Não era um homem vulgar, qualquer coisa nele me impeliu a chamá-lo de mestre, ao jeito do nosso povo… “Rabbi…”
De início ele olhou-me, desconfiado… afinal de contas, as minhas vestes denunciavam a minha posição, as minhas mãos cuidadas, e os meus pés bem tratados e bem calçados mostravam bem qual era o meu “ofício”… e apressei-me, interiormente relutante, a sentar-me também diante da fogueira, ali mesmo no chão.

Queria fazer-lhe tantas perguntas!... Eu que era mestre reconhecido pelos grandes deste mundo, fiz-me discípulo de um galileu nazareno, por uma noite.
Falou-me na urgência em nascer de novo, sem que eu soubesse entendê-lo, parecia ler-me o Coração inteiro… nascer de novo, começar e aprender a viver outra vez, como?
Falou-me em nascer, não do ventre das mães, mas do ventre da Água e do Espírito…
Falou-me da liberdade do vento que apenas se ouve, mas ninguém sabe de onde vem, nem para onde vai… e que é assim que acontece com quem nasce de novo.
Da minha vida cheia de seguranças e do meu futuro estável e sem sobressaltos, perguntei-lhe como poderia ser isso assim.
Falou-me da luz, eu que o procurei na noite.
Falou-me de quem prefere a noite, para que as suas obras não sejam conhecidas.
Falou-me de quem se aproxima da luz, por praticar a verdade, para tornar claros os seus actos segundo a vontade de Deus.
Falou-me tanto de mim próprio, sem dizer o meu nome. Parecia que nas suas palavras trazia tantos nomes de tantos rostos… não falava de multidões, mas de pessoas. Não falava de normas, mas de vida. Não falava de fardos, mas de liberdade. Não falava de tronos ou poderes, mas num lugar em que todos são irmãos, todos… não apenas os do nosso povo, mas todos os povos. Não falava de guerras ou domínios, mas de uma outra cidade em que Deus tem já preparado um banquete e está à porta, à espera para servir quem chega. Como um pai, desejoso de nos dizer: “Ardia em desejo de te abraçar e de te sentar à minha mesa, comigo!”
Perguntava-me vezes sem conta como poderia ser isso…
Fiz-me discípulo daquele galileu por uma noite.

Outros, do Sinédrio, mandaram os guardas do Templo ir prendê-lo… mas os guardas regressaram, sem saber como prender tal homem, estupefactos, tanto quanto também eu já andava… ainda retorqui: “Porventura permite a nossa Lei julgar um homem, sem antes o ouvir e sem averiguar o que ele anda a fazer?”. Eu tinha já um fogo dentro de mim que não podia calar completamente. Esperava que também eles o buscassem e o escutassem como eu fiz… mas tinham os Corações endurecidos.

Até que chegou aquele dia tenebroso em que os nossos o apanharam e o quiseram julgar, eu, o José de Arimateia, e poucos mais, não concordámos com a sentença e a decisão final… mas eles prosseguiram, com o apoio de Pilatos condenaram-no à morte. Acabariam assim com o estorvo que lhes causava este homem.

Que mais poderia eu ter feito?...
Ainda hoje me faço esta pergunta… como fiz na tarde daquele dia enquanto segurava nos meus braços o corpo sem vida deste homem. José de Arimateia teve a coragem que eu não tive de falar com Pilatos, secretamente, para retirar o corpo do Rabbi, da cruz, e lhe dar uma sepultura digna de um judeu.
Levei mirra misturada com aloés em tal quantidade que só é digna de um rei.
Só estavam connosco a mãe do José, e uma outra discípula do galileu Yeshuah… a Maria que era de Magdala, uma mulher que se dizia ter bebido das palavras dele como ninguém.
Foi ela que, no dia seguinte, disse que o Rabbi estava vivo…

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