Naquele dia estava já tudo preparado para nos pormos a
caminho novamente, com a caravana, quando o Manahen foi convocado para mais um
daqueles banquetes inesperados e fúteis que me esgotam. Apesar de ter crescido,
e ter sido educada na corte, toda a minha vida, o meu sangue, gritou com
saudades do deserto. É só lá que eu respiro, é lá a minha “casa”, quando
montamos a tenda num vale aberto ou no cimo de uma montanha.
Era do meu pai, este negócio das sedas que trazemos das
terras longínquas onde nasce o sol. Herodes, amigo de infância, que era como que irmão
do Manahen, achou conveniente juntar as nossas famílias porque a minha é de
muitas posses e o Manahen é o seu administrador, um alto cargo.
Nunca pensei que pudesse viver outra vez, e mais dolorosamente
ainda o que vivi naquele banquete.
Apesar do Manahen não gostar muito na altura, eu fui várias
vezes escutar aquele que fazia outros mergulhar no rio, o João. Fui poucas
vezes porque ainda ficava longe de Tiberíades. Perturbava-me, inquietava-me,
feria-me até, tudo o que ele falava alto daquela margem. Juntavam-se sempre uns
poucos ali a escutá-lo e muitos eram os que se faziam lavar, mergulhar, pela
sua mão. Falava de um tempo novo, que chegaria para quem estivesse disposto a
abraçar esse novo. E eram assustadoras as acusações que fazia daqueles com quem
eu mesma me reclinava à mesa nas refeições da corte. Que ousadia a dele!... Uma
mistura de afronta com coragem desmedida que chamava os meus pés e ouvidos
àquela margem.
Cheguei a convidá-lo a ir ao palácio, e Herodes ficou também
assustado e ao mesmo tempo fascinado com aquele João.
Um dia fui escutá-lo novamente e já não estava lá. Herodes
tinha mandado prendê-lo como quem quer guardar só para si uma ave exótica
demasiado rara e demasiado perigosa... não fosse alguém dar-lhe ouvidos e isso
chegasse a Roma... Aquela mulher terrível, Herodíades, com quem ele partilhava
as ambições e podridões fê-lo calar de uma vez para sempre a Voz que falava no
deserto deste povo. Não bastava cortar-lhe a língua, todo ele era uma ameaça
provocante. Vestia-se com peles de animais e nunca ía ao mercado comprar
alimento, procurava e comia o que lhe dava o deserto: mel e gafanhotos. Era um
homem livre de tudo e de todos... não bastaria cortar-lhe a língua, era preciso
cortar-lhe a cabeça porque todo o seu corpo, todo o seu viver, todo o seu
sangue falava alto demais e incomodava.
Depois daquela noite senti que o coração do Manahen mudou em
relação a Herodes. Apesar de tudo, Manahen também aceitava que João fosse
chamado de profeta... Há dezenas de anos que o povo não chamava a ninguém de
profeta. Este João era uma Voz. Manahen já tinha escutado rumores acerca de “limpezas”
criminosas ordenadas por Herodes, mas isto era demasiado. E se João era mesmo
profeta, e se falava em nome de Deus?...
Mais tarde ouvi dizer na corte que andava a aparecer por aqueles mesmos lados da margem do Jordão um outro jovem, cheio de vida, feliz, de palavras fortes, sempre com um olhar iluminado de esperança que cativava multidões para o escutar.
Fiquei com vontade de o procurar, mas estava na hora de
partir e tinha acabado de dar à luz o meu menino, o Lucas.
Meses depois, quando regressámos, a Susana falou-me dele
novamente. Esse jovem, Yeshua, já não andava com multidões, nem ficou ali pelas
margens do Jordão. Começou por andar por todos os povoados da Galileia, a sua
terra natal, e estranhamente começou a caminhar com alguns poucos que o
seguiam, para sul.
Depois de o ter escutado não voltei a ser a mesma. Decidi
segui-lo. Deixei a corte. O Manahen nunca se opôs, ele mesmo andava inquieto
com o pouco que se dizia do nazareno, mas não podia deixar a administração,
Herodes jamais o permitiria.
Segui o nazareno, fui com a Susana que já andava com os
chamados “Doze” (nome simbólico para significar “Novo Povo”) e colocava os meus
bens à disposição sempre que era necessário uma vez que andavamos de povoado em
povoado sem nunca nos chegarmos a instalar por muitas semanas. Eu estava
habituada à vida nómada... mas isto era outra coisa.
... até àquela noite, em Jerusalém, em que alguns de nós
tentámos que ele saísse connosco da cidade, porque já era perigoso andar de dia
pelas ruas. Todos os religiosos o conheciam e já se sabia que o queriam prender
e castigar.
Naquela noite, mais uma vez, comemos a ceia, recostados à
volta daquela grande mesa. Parecia que estava tudo bem, e ao mesmo tempo não
estava. O rosto do rabbi era mais grave e seguia todo o ritual da ceia mais
devagar, como que a querer fazer tudo novo, com significados fortes. Queria
colocar ali tudo o que estavamos a viver. Somos, todos juntos, aquele pão. Um
pão, um corpo dele, que se parte e parte e parte, para que não falte a ninguém,
e todos sejam um, aquele pão, aquele corpo... dele.
Estavamos preocupados.
“Onde é que tudo isto nos vai levar a nós?” repetiam eles.
O rabbi estava irredutível, daquela loucura insistente que
não chegavamos a entender, recusava-se a voltar para trás, e o que mais nos
causava medo é que se recusava a parar e a calar.
Depois da ceia foi tudo tão rápido, e tão dolorosamente
lento ao mesmo tempo.
Tremi vezes e vezes sem conta cada vez que o contava ao Lucas, o meu menino de olhar fino e coração doce e inteligente. Nunca se cansava de me escutar, sempre a pedir-me para voltar a contar, ele queria gravar tudo dentro dele, como se aos poucos entrasse dentro do tempo e se pusesse lá, a caminhar com o rabbi, lá nesses lugares e nesses tempos que agora me parece que não ficaram lá.
Tremi vezes e vezes sem conta cada vez que o contava ao Lucas, o meu menino de olhar fino e coração doce e inteligente. Nunca se cansava de me escutar, sempre a pedir-me para voltar a contar, ele queria gravar tudo dentro dele, como se aos poucos entrasse dentro do tempo e se pusesse lá, a caminhar com o rabbi, lá nesses lugares e nesses tempos que agora me parece que não ficaram lá.
O Lucas não se enganou quando me dizia que um dia escreveria
tudo isto, para que esta notícia chegasse a muitos deste tempo e de outros
tempos.
E escreveu mesmo, enquanto o Manahen, que se fez discípulo, presidia servindo a comunidade dos irmãos de Antioquia.
"Jesus andava em cada cidade e aldeia,
a dar a notícia do Reino de Deus
e os Doze com ele
e algumas mulheres
que tinham sido curadas de maus espíritos e de doenças:
Maria, chamada Madalena, da qual tinham saído sete demónios;
Joana, mulher de Cuza, administrador de Herodes;
Susana
e muitas outras,
que os serviam com os bens delas."
Lucas 8, 1-3
O Yeshua foi assassinado.
“Julgado” sem
julgamento.
Condenado injustamente
à pena de morte num poste e trave horizontal.
Assassinado fora da “santidade”
da cidade santa.
Em pleno caminho de
entrada na cidade, na véspera da maior festa do ano.
Naquela tarde, multidões
passavam por ali para ir celebrar a Festa.
Ele era mais um entre
tantos castigados mortalmente, para servir de exemplo,
os da religião diziam
de alguma maneira:
“é assim que tratamos
os rebeldes e desobedientes,
os que têm a ousadia de
chamar a Deus de ‘papá’
os que põem em causa
os nossos primeiros lugares
os que duvidam que
sabemos tudo sobre o que Deus é e o que Ele quer
é assim que tratamos
os falsos profetas e os outros também
porque para nós são
todos falsos e incómodos
esses que têm a mania
de defender os interesses do povo mais pequeno.
Fazem muito barulho
é preciso calá-los...”
E despiram-no deixando-o
completamente nu
e deixaram-no assim
exposto diante das multidões que passaram ali
(ora aqui está
verdadeiramente o Yeshua, o santíssimo, verdadeiramente exposto)
e riram-se dele, mas
de longe,
porque aquele lugar
era demasiado impuro para as suas vestes imaculadas
“Falamos em nome de
Deus, sabemos que é isto que Ele quer”
não se cansavam de o
repetir ali, e ainda os ouço agora dizê-lo.
E para o afirmar
melhor, e desacreditar esse nazareno parolo lá do norte
Fizeram questão que
fosse no poste, de braços esticados na longa trave,
que fosse como dizem as
sagradas escrituras: “Maldito aquele que está suspenso no madeiro”
A declaração fiel de
que esse Yeshuah é um amaldiçoado por Deus.
O fracasso total de
uma vida nada pacífica
e tão avisada pelos
religiosos
“cuidado, não podes
fazer isto... não podes fazer aquilo,
não podes fazer bem às
pessoas
e dar-lhes esperança
e escutá-las
e criar ‘famílias’ que
se apoiem e entreajudem,
é mau para os nossos ‘negócios’
e não andas a cumprir
a Lei”
Todos os amigos
fugiram, aqueles homens ‘fortes’
dos que ele chamava de
amigos, irmãos,
ficaram os mais
fracos... as mulheres
Como não rir diante de
um profeta que afinal nem deixa discípulos homens
que mestre ridículo,
as multidões que te seguiam, desiludidas, ou fogem ou te gozam
E morreu com a
pergunta nos lábios “Meu Deus porque me abandonaste?”
porque era nos irmãos
que Jesus via Deus, e não nas estrelas ou nos ares vazios.
E morreu entregue,
ainda assim a
acreditar que Deus não se podia calar.
Morreu......
Acredito que a Terra inteira
se calou naqueles instantes
Todos os pássaros e
todos os riachos se calaram com o Deus calado
MAS....
Deus
escutou, viu e amou
Então Deus desceu e
levantou-o
e jamais Se cala na
voz dos que esperavam e dos que seguem esse
o que veio de Nazaré
é para lá que eu quero
ir também
e começar tudo de novo
sem deixar de olhar para trás
atrás do rabbi
"No primeiro dia da semana
de madrugada bem cedo,
as mulheres foram ao sepulcro,
levando os aromas que haviam preparado.
E encontraram removida a pedra da porta do sepulcro e,
entrando, não encontraram o corpo do Senhor Jesus.
Estando elas perplexas com isto,
entrando, não encontraram o corpo do Senhor Jesus.
Estando elas perplexas com isto,
apareceram-lhes dois homens em vestes resplandecentes.
Como elas ficaram com medo e voltavam o rosto para o chão,
eles disseram-lhes:
'Porque procurais entre os mortos o que vive?
Não está aqui, mas foi ressuscitado!
Lembrem-se de como vos falou, quando ainda estava na Galileia,
(...)
Lembraram-se das suas palavras.
Voltando do sepulcro, foram contar tudo isto aos Onze e a todos os restantes.
Eram elas Maria de Magdala,
Joana
e Maria, mãe de Tiago.
Também as outras mulheres que estavam com elas diziam isto aos Apóstolos;
mas as suas palavras pareceram-lhes um desvario,
e eles não acreditaram nelas."
Lucas 24,1-11
2 comentários:
Fogo! Demoras a postar, mas quando o fazes... Agora não deu para ler, mas volto.
Um grande abraço
D-e-l-i-c-i-o-s-o
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