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O pastor de Nazaré

“Qual é o homem dentre vós que,
possuindo cem ovelhas e tendo perdido uma delas,
não deixa as noventa e nove no deserto e vai à procura da que se tinha perdido,
até a encontrar?
Ao encontrá-la, põe-na alegremente aos ombros e,
ao chegar a casa,
convoca os amigos e vizinhos e diz-lhes:
‘Alegrai-vos comigo,
porque encontrei a minha ovelha perdida.’”
Lc 15,4-6


Estava eu, de passagem, por Cafarnaum, e tive mesmo que me aproximar porque não podia acreditar naquilo que os meus olhos viam.
Era mesmo ele, tinha o mesmo sorriso e a mesma vivacidade de sempre.
Ainda me lembro tão bem como aquele rapaz ainda de palmo e meio tanto barafustou com a mãe porque teimava em vir comigo numa daquelas tantas madrugadas. Tantas vezes já, eu tinha conseguido demovê-lo, que desta vez já não sabia como fazê-lo.
Estava eu a abrir a porta da cerca do meu rebanho de cem ovelhas e cabritos, antes ainda de espreitar o sol, espreitavam já aqueles olhitos ensonados da janela da Maria do Ti José. Ainda pequenito corria a agarrar-me na manga da túnica a perguntar-me onde ia eu, tão de noite ainda…

Mas daquela vez tanto teimou que acabei por aceitar trazer o rapaz uma vez ou outra… “Mal não lhe faz…” dizia a Maria “… pode ser que se canse com a caminhada!”, e riamo-nos enquanto me colocava nas mãos um farnel para comermos a meio da tarde. Mas não eram trabalhos para um rapaz tão cheio de vida como ele era. É que eu não sou muito dado à conversa.
E eu gosto da vida de pastor, não o nego… mas é tarefa dura.

Mas o Yeshu tinha qualquer coisa de especial, que encantava. O raio do miúdo fazia-me sempre cada pergunta!... Coisas em que eu nunca tinha pensado, não sei onde ia buscar ele tanta pergunta. Diante daquele olhar o mundo inteiro parecia-lhe um mistério que o empurrava para a frente, o desafiava a descobri-lo e a conhecer-lhe os segredos mais íntimos, as razões de ser e existir mais profundas.

Parecia que a caminhada até às pastagens nunca o cansava. E é que tínhamos ainda que subir e descer uns quantos montes… mas ao chegar àquele alto da serra é que era um regalo vê-lo a percorrer com o olhar toda a paisagem em redor… de cada vez que ali chegava parecia ser sempre a primeira, e bebia com os olhos, sem pestanejar, tanta beleza que ali se pode contemplar, e respirava tão fundo que parecia querer conter o ar inteiro da serra.

Das perguntas que mais me desconcertaram, foi quando uma vez quis perceber se eu me sentia como uma mãe a cuidar dos filhotes. Era um rapaz esperto, e eu bem via como ele estava atento ao cuidado extremo que eu tinha com as ovelhas.
Esta vida é muito solitária… passam-se dias, às vezes semanas, em que não vejo ninguém… mas se acontece passar dois ou três dias longe delas, é bem verdade que já lhes sinto a falta.
Ganhei um carinho por todas elas que nem sei explicar. É verdade que as conheço muito bem a todas… são todas tão diferentes para mim.

Algumas delas ainda me dão um bocado que fazer, é mesmo preciso, às vezes, de um salto, encaminhar três ou quatro das mais novitas que teimam em meter-se nas silvas.
Tenho uma dezena delas que é preciso ter muita calma, já não andam tão depressa como as outras. Outras são tão apressadas que tenho que estar sempre a assobiar-lhes e a fazer-lhes sinal com o cajado porque senão vão por aí sem rumo…
O pior ainda é quando andam por lá os lobos… há épocas em que é assim. É nessas alturas que tenho que redobrar os cuidados, para as ter juntas o melhor possível, para que não as perca de vista e porque com o rebanho bem unido assim, os lobos já não se atrevem tanto.

É bem verdade que amo muito as minhas ovelhas… nunca perdi nenhuma delas… venha o lobo que vier, tem que me fazer frente, porque do meu rebanho não leva nenhuma.

Mas houve uma ocasião, em que o rapaz tinha vindo comigo, o Yeshu, e o tempo tinha arrefecido nesse dia, caiu um nevoeiro como é raro ver por aqueles lados. E foi mesmo no dia em que tive que seguir mais adiante nas pastagens porque já não havia pasto por ali. Já estava na hora de comermos o farnel e dei-me conta que faltava uma ovelha. Não havia sinais de lobos por ali… e imaginei logo que ela se tivesse perdido do rebanho.
Fiquei de Coração nas mãos a pensar em como estaria ela assustada, se estaria ou não ferida, se estaria aflita, presa em algum silvado, sozinha, exposta ao perigo dos lobos. Não sei descrever como fiquei, só tinha certeza de uma coisa… não conseguia de maneira nenhuma deixá-la para trás. O Yeshu só me olhava com aqueles olhos, como quem quer ajudar sem saber como…
Arrisquei tudo… confiei nas minhas ovelhas a ponto de as deixar sozinhas… em grupo estavam menos expostas, corriam menos perigos do que a minha ovelha que estava perdida não sei onde. Pobre ovelha… parecia que a imaginava na sua aflição, porque nunca se tinha visto assim sozinha no meio do monte.
Arrisquei tudo… confiei que as minhas outras 99 haveriam de ficar por ali, enquanto eu me atirei numa corrida a ir procurar a minha ovelha… onde estaria ela…?
Procurei e corri o mais depressa que pude, por ela, e pelas que deixei no prado. Procurei, procurei sem desistir, eu só queria encontrá-la…
E por fim, encontrei-a, gemia desconsolada, aflita… estava ferida nas patas de tanta corrida que deve ter dado, depois de ter caído da aventura de algum penhasco que tentou subir, já a vira algumas vezes a tentar fazer dessas peripécias… fiquei tão emocionado ao vê-la que a abracei e carreguei com ela até junto do rebanho para lhe tratar das feridas.

O rapaz corria comigo o tempo todo… por momentos nem me preocupava com ele, acompanhava-me bem. Mas hoje vejo como viveu intensamente a minha aflição desse dia…

Oh... isto nem parece meu, ouvi-lo agora a falar da nossa ovelha perdida, fez-me recordar tudo e emocionou-me.. Ouvir o Yeshu, tão homem já, ali, no meio daquela gente que o ouve com tanta atenção e admiração… a contar-lhes a nossa história…
Agora entendo, sim…
Agora percebo melhor porque me comparava ele a uma mãe cuidadosa com os filhos… andava ele a descobrir quem era o nosso Deus, andava a descobri-l’O e a saboreá-l’O.

Parece que ainda foi ontem que vi este rapaz andar, uma vez ou outra, comigo pelos montes, e as ovelhas todas… naquela serra imensa onde se respira um ar tão diferente de tudo, onde nos parece que num abrir de braços agarramos todos os montes… aí onde o silêncio é tão cheio, tão pleno de vida, tão pleno de toda aquela vasta imensidão que nos faz saborear as melodias do vento. Onde o sol queima e escurece a pele, e quando o frio nos apanha e nos obriga a encontrar ou construir abrigo e em que o calor fogueira é o que apetece e sabe bem ao final do dia…
Tudo isto porque é preciso levar todas as ovelhas às melhores pastagens.

Ele bem pode dizer hoje que é um bom Pastor porque o que dele se ouve, enche-nos o Coração, como quem leva um rebanho incontável de ovelhas, umas feridas, outras assustadas, outras desprezadas por outros pastores, outras sozinhas, outras perdidas… as une sempre e as leva a comer e beber em prados do melhor que se pode conhecer…

É Deus, assim, um Pai tão meigo, como uma mãe tão cheia de cuidados e atenções… como um pobre pastor, como eu… que tão amorosamente cuido do meu rebanho…?

Yeshu… Yeshu…





(As fotos são do documentário "Ainda há pastores"do realizador Jorge Pelicano, um filme que vale bem a pena saborear)

2 comentários:

Anónimo disse...

MUITO OBRIGADO, Anawim. MUITO OBRIGADO!

Anónimo disse...

Só mesmo o Bom Pastor sabe cuidar das suas ovelhas,para que nenhuma se perca.
Lindo esse documentário que passou nos écrans.Tanto tem de dura essa vida,como de pura,bem longe do inferno das cidades.(Fora-da-lei)