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Neg-Ócio




O dever do trabalho (o acto, que é mais importante que o produto)

Parece que a dependência moderna pelo trabalho se está a converter numa epidemia da humanidade. Deves trabalhar porque aparentemente a tua simples existência não tem qualquer valor; por isso, tens que justificar a tua vida com base na sua utilidade.

Tens que ser útil contribuindo para o bem-estar de uma sociedade que deixou de ser uma comunidade. Não podes dar-te ao luxo de ser um adorno; tens que ser um êxito. Não se trata só do facto de teres um papel a desempenhar, não se espera de ti que cumpras deveres e responsabilidades na tua vida pessoal; não é uma questão de encaixares ou não num esquema mais ou menos dinâmico, como acontece em grande parte das sociedades tradicionais.

Espera-se que produzas, que faças algo que não és tu, algo que possa ser objectivado, e que, através do dinheiro, possa estar disponível e ser trocado. Tens que ganhar o que consomes, além da tua reputação e privilégios, ou então te olharão como se fosses um parasita inútil. O mendigo é um criminoso sujeito a perseguição judicial.

Nada é gratuito, nada chega como dom ou oferta, as gratificações são um benefício fiscal que é preciso declarar! Tudo tem um preço e tens que ganhar o suficiente para o pagar. Os empregos podem ser muito diferentes, mas aqui todos se tornam iguais na medida em que todos eles são convertidos em dinheiro. O reino da quantidade requerido pela ciência passou a ser o reino do dinheiro no âmbito da vida humana.

Existes e és tanto quanto és um trabalhador e alguém que produz. Não há outro critério para a autenticidade do teu trabalho fora dos seus resultados. Serás julgado pelos resultados do teu trabalho.
A gratuidade é uma palavra vazia. Justiça é o que é necessário. A tua disciplina e o teu ascetismo hão-de ser canalizados para uma melhor produção e a um maior volume de trabalho. Podes relaxar e até entreter-te mas só com a finalidade de poder trabalhar melhor e para render mais.

Podes escolher a tua tarefa, porque se trabalhas com prazer produzirás mais e com menos desgaste. Até às vacas se lhes coloca música.
“O ofício é o culto”. A eficiência é um nome sagrado e a vida se subordina à produção. Até o alimento é uma arma militar, eufemísticamente chamada política.

Certamente, as sociedades tradicionais não estão livres de uma certa compulsão pelo trabalho e até de trabalhar para outros. Não deveríamos idealizar o passado ou outras culturas. Mas há algo específico no dever do trabalho da modernidade. Um pecado capital da moral cristã era a tristeza, o desgosto, a acedia (secura espiritual). Hoje em dia isso tem-se traduzido como preguiça, ociosidade. O ócio, o tempo livre, tornou-se num vício e o neg-ócio, numa virtude. Numa sociedade hierárquica, uma vez que se alcançou a idade adulta, cada qual encontra o seu lugar, o que te pode conferir um sentido de realização. Numa sociedade igualitária o postos mais altos estão supostamente abertos a todos.

O mundo tecnológico moderno tornou-se tão complexo e exigente que, a fim de “desfrutar dos seus bens”, temos que obedecer às suas leis. O trabalho converte-se num fim e tal fim não é a plenitude humana mas a satisfação das suas necessidades. A crença de que cada ser humano não é senão um nó de necessidades e cuja satisfação trará automaticamente a felicidade e satisfação é um mito subjacente que numa outra ocasião qualifiquei de “Estilo de Vida Americano”, um modo de viver que agora mesmo está a ser derrubado no seu país de origem ao mesmo tempo que se estende por todo o mundo como a condição necessária para uma tecnologia de êxito.

Seja como for, o contemplativo encontra-se no extremo oposto de tal discurso. Em primeiro lugar, adopta uma atitude completamente diferente diante do trabalho. A primazia não a tem o produto mas o trabalho, ou seja, o acto em si, de modo que cada trabalho terá que ter o seu próprio sentido. Se um acto não tem sentido em si, simplesmente não se faz. O respeito por cada ser e sua constituição é algo característico da atitude contemplativa.

Cultiva-se uma planta porque o acto de cultivá-la já é significativo em si mesmo: uma colaboração entre as forças vitais humanas e as da natureza, um propósito tanto natural como cultural, e uma espécie de enobrecimento inerente ao próprio acto. Não é a acção de um escravo nem a de um senhor, mas a de um artista.
A segunda intencionalidade ou a intenção do agente será uma prolongação harmoniosa da própria natureza do acto. Cultivas a planta não só porque se realça a beleza e se fomenta a vida mas também porque talvez a queiras comer. Comer pertence à ordem cósmica que representam o dinamismo, influência mútua, crescimento e transformação do universo inteiro.

Em terceiro lugar, a tua intencionalidade tenderá a cristalizar a finalidade do acto em si de modo que as tuas intenções privadas se vejam reduzidas praticamente a nada. O contemplativo renuncia aos próprios resultados do seu trabalho, realizando cada actividade por si só, e não pelo que possa derivar desta. Se o acto em si não é significativo não se realiza. Se já está cheio de sentido, não haveria de ser abordado como o simples meio para algo mais. O contemplativo não faz nada com o objectivo de conseguir algo mais. A arte tem lugar porque descobrimos que cada um dos passos distintos e intermédios já estão cheio de sentido em si, do mesmo modo que os esboços ou a estrutura podem ser, por si mesmos, tão belos e acabados como a composição final. Isso não exclui a consciência de realizar actos parciais tendo em conta a totalidade; mas, tal como sucede na cerimónia do chá japonês, cada acto é uma parte orgânica da operação do conjunto.

O olho contemplativo é o olho atento ao brilho de cada momento, à transparência do mais simples, à mensagem de cada dia. Cabem aqui as actividades concebidas para o futuro porque a causa final está presente desde o princípio e o acto em si é a totalidade de todos os seus aspectos diferenciados.

A obsessão pelo trabalho que se tem hoje em dia, mesmo por aquele que não está encaminhado para a produtividade e que chama com orgulho criatividade, não é capaz de fazer de cada pessoa um autêntico “homem fazedor”, porque o que fazemos não é nem a própria vida nem a própria felicidade, e nem sequer uma colectividade. “Trabalha-se”, isto é, está-se encadeado num instrumento de tortura, a fim de justificar de alguma forma a própria existência diante dos olhos dos outro e, ah!, para muitos hoje, com o objectivo de a justificar diante de si próprios e sob o olhar de Deus.

O contemplativo não é o asceta que se dispõe a trabalhar para si próprio, ou para os demais, ou à espera de fins valiosos. O contemplativo goza a vida porque a vida é gozo e puro prazer de auto-realização, e vê um jardim inteiro numa só flor. É capaz de apreciar a beleza dos lírios silvestres ainda que os campos não estejam arados. O contemplativo tem a capacidade de transformar uma situação espontaneamente pelo mero gozo de ter detectado um ponto luminoso nisso que de outro modo seria apenas o véu escuro dos esperados objectivos humanos.


do artigo intitulado "A TAREFA CONTEMPLATIVA: UM DESAFIO À MODERNIDADE", na revista Cross Currents
(Fall 1981, pp. 261-272)
de Raimon Panikkar





1 comentário:

Anónimo disse...

Verdade!

Agostinho da Silva, com a sua imensa sabedoria, afirmava que o homem só criando se realiza. Hoje somos escravos de uma sociedade que nos consome!

Abraço