Quando passo a pé naquela rua tenho sempre o cuidado de
passar o olhar lá pelo alto, para a sua janela. Quem sabe se não estará por lá,
a ver quem passa, chame por mim e eu não oiça, com os ouvidos nos ruídos e
silêncios do mundo cheio de gente com sorrisos e lágrimas dentro.
Já há muitos dias não passavam por lá os meus olhos. Naquele
dia passaram e lá estava ela, com uma vida nos seus trinta e tais, cheios de
rugas bonitas que não lhe dão os outonos que têm.
“Como é que vai o seu homem?”
E o sorriso enorme, embora já não tenha umas quantas mós me
responde
“Vai bem, vai bem. Quer subir para o ver?”
Quis pousar os olhos cá embaixo, naquele instrumento que
usamos para contar as voltas que a Terra dá ao Sol e sobre si mesma... mas não
tive coragem. Pensei comigo “... deixa-te de tretas e sobe”.
Foi a primeira vez, em tantos anos que já passo por ali, que
me convidou para entrar na sua casa. É sempre estranha a sensação de entrar num
lugar cuja porta conhecemos bem, mas esconde um mundo inteiro dentro,
totalmente novo. É perceber, outra vez e outra vez e outra vez como é coisa séria
entrar em casa de alguém, como é coisa séria entrar na vida de alguém.
Às vezes, quando entramos, podemos andar pelo mundo fora que
nunca mais de lá saímos. Outras vezes acontece entrarmos e andamos pelo mundo
fora como se nunca lá tivessemos entrado. São mistérios ou não do coração da
gente sempre a fazer-se ou não gente.
O rosto desfigurado pela total ausência de mós impressionava
um bocadito, dói-nos nos olhos mas depois passa. Dormia sereno.
“Oh meu menino, acorda... tens uma visita... acorda” e
acariciava-lhe o rosto cheio de rugas bonitas, coisa comum lá por casa, está
visto. Se ela tinha trinta e tais, ele não podia ter mais que quarenta e tais, apesar
dos papéis lhe contarem outros outonos também. Quase sem forças para abrir os
olhos, nem voz que se ouvisse clara perguntava-lhe quem era eu... a memória
andava fraca como a vista e a voz e o gesto, mas dentro estava mais vivo que nunca.
“Dou-lhe o comer e os remédios por esta sonda, está a ver...”
e tinha gosto em explicar tudo, e mostrar a mesinha onde tinha expostos todos
os instrumentos do bem amar e bem cuidar.
Com as lágrimas a fugir-lhe dos olhos e a voz amarga contava
como aquela enfermeira no outro dia foi cruel a perguntar-lhe, do fundo da cama
“Ora diga-me o que é que ele está aqui a fazer? Ele não fala consigo, não lhe
faz companhia... que é que ele está aqui a fazer?”
“Eu não o tenho aqui para me fazer companhia. Eu só quero
cuidá-lo enquanto puder e tiver forças”
Ela quer dar-se.
Deixem-na dar-se a quem ela ama e deixar-se
amar, como pode, por quem é amada!
“Não gosto dessa enfermeira. Ela não trata bem o meu menino.
Gosto mais da outra que tem vindo sempre” e enxugou as lágrimas
“Ora pergunte-lhe...” desafiava-me ela “... pergunte-lhe
quem é a enfermeira dele... pergunte”
E perguntei
E uma vozita sumida mas convicta saía “É a minha mulher”
Ela não contém a alegria sempre nova de escutar a resposta
mais que sabida.
“Arranjou aqui uma rica enfermeira, já viu?”
“Pois é, uma enfermeira que não precisou de diplomas...” dizia,
e ria-se feliz feliz feliz....
Mulher sábia e feliz, não sabe sequer assinar o próprio nome
e tem a sabedoria e a beleza da vida que os anos insistem em não mostrar como
são tantos...
“É o meu menino lindo... é o meu menino lindo”. Quase trinta
anos de casados e o carinho é o daqueles que ainda não deram o laço...
“homem e mulher, Deus os fez, e viu que isso era mais que
bom, era mesmo muito bom”
Antes de voltar a descer deixei um aperto de mão e um sempre
Até já, havemos de nos reencontrar em alguma casa novamente
Até já
3 comentários:
...É sempre estranha a sensação de entrar num lugar cuja porta conhecemos bem, mas esconde um mundo inteiro dentro, totalmente novo... e é...
"...em Ti encontro o meu agrado." li isto estes dias e a palavra "encontro" é uma má traduçao, mas soube-me tao bemmm.
Parece que á tanto tempo procurava e finlmente...encontrou...
passamos dias e dias a encontrarmo-nos, sim porque não é coisa de se fazer sozinho e ao fim de alguns anos este movimento de Verdade continua... É que há Hoje algo a Encontrar que não havia antes :)
e já me alonguei, graças ao nosso Abba...que é Grande
Encontrar-se feliz na vida de alguém é a maior de todas as recompensas.
Dos melhores blogs católicos que tenho visto nos últimos tempos:
Teologia para Pensar
vale a pena passar por lá
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